Assédio moral: O lado sombrio do trabalho

Pesquisa mostra o universo de humilhações e constrangimentos nas relações entre chefes e subordinados

Fonte: Revista Veja


José Edward

Confira os itens do quadro abaixo. Se na empresa onde você trabalha seu chefe age continuadamente de acordo com um ou mais dos comportamentos listados, é provável que você integre um enorme grupo de empregados vitimados por um dos piores males das relações de trabalho, o assédio moral. Essa lista foi preparada com base em consultas a 42.000 trabalhadores na primeira grande pesquisa nacional sobre o tema. O estudo – coordenado pela médica do trabalho Margarida Barreto, a maior especialista brasileira nessa matéria – foi realizado nos últimos cinco anos, envolvendo funcionários de empresas públicas e privadas, organizações não-governamentais, sindicatos e entidades filantrópicas. Do total de entrevistados, mais de 10.000 afirmaram ter sido vítimas de humilhação ou constrangimento, repetidamente, no ambiente de trabalho, na maior parte dos casos por ação dos chefes.

Uma das conclusões dessa pesquisa é que o assédio moral – muitas vezes chamado de tortura psicológica – se transformou em um problema de saúde pública. "A violência moral nas empresas tem contornos sutis", diz a pesquisadora. "Coação, humilhação e constrangimento são situações comuns que muitas vezes nem são percebidas pelas vítimas como um ato de violência." No ritmo de alta competição cada vez mais estimulado em escritórios e fábricas, a pressão exercida pela chefia para cobrar resultados acaba freqüentemente excedendo os limites do razoável. Envolvido nessa rotina de aumento de produtividade, o trabalhador nem sempre percebe o problema – ou, para piorar, passa a ser cúmplice do próprio martírio, aumentando sua jornada, tornando-se um adversário dos colegas para demonstrar suas capacidades e reduzindo prazos e equipes, para não ser apontado como peça discordante do sistema. Na conta final, tem-se, de um lado, gente frustrada por não alcançar as metas cada vez mais ambiciosas. E, de outro, funcionários que transformam o trabalho em razão única de sua existência – até o dia em que não mais darão conta do recado e serão substituídos, descobrindo que investiram tudo num falso projeto de vida.

Os relatos destacados nesta reportagem apresentam alguns casos extremos, que chegaram à Justiça e servem de exemplo dos limites que esse tipo de abuso pode ultrapassar. Nesses casos, e em milhões de outros que trabalhadores de todos os níveis enfrentam e diante dos quais silenciam, dia após dia, o que se vê é o potencial destrutivo dessa prática. Margarida Barreto, que produziu uma tese de doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com as informações que coletou, conclui que o assédio moral provoca danos à identidade e à dignidade do trabalhador e, por conseqüência, aumenta a ocorrência de distúrbios mentais e psíquicos. Num detalhamento do estudo, vítimas de assédio moral no trabalho relataram efeitos físicos e psicológicos dessas situações: stress, hipertensão arterial, perda de memória e ganho de peso, entre outros problemas. Pelo menos 60% das vítimas de casos mais graves dizem ter entrado em depressão em decorrência do assédio moral (veja quadro).

Em 12% dos casos, o assédio moral tem início com abordagens de caráter sexual. As mulheres são mais assediadas do que os homens e há diferenças na forma de reação. Por questões culturais, elas desabafam mais facilmente com amigos ou colegas, enquanto os homens, constrangidos, guardam consigo a agressão sofrida. Eles geralmente mantêm silêncio, envergonham-se e sentem-se fracassados. Não poucas vezes, usam o álcool ou outras drogas como válvula de escape. Estudos da Organização Mundial de Saúde revelam que aumentam em todos os países os casos de stress e o índice de mortes por problemas cardiovasculares decorrentes da degradação das condições de trabalho. Uma análise realizada há cinco anos pelo Fundo Europeu para Melhoria das Condições de Trabalho e de Vida revelou que 8% dos trabalhadores da União Européia – 12 milhões de pessoas – já tinham passado por humilhações e constrangimentos no ambiente profissional. Esse mesmo estudo revelou que, na Suécia, 15% dos casos de suicídio são causados por fatores ligados ao mundo do trabalho.

No Brasil, apenas nos últimos cinco anos o debate em torno de assédio moral ganhou fôlego e apareceu nos tribunais, gerando jurisprudência a respeito. Nesse período, foram criadas diversas leis municipais e estaduais tratando do tema. Há também um projeto de lei em discussão no Congresso Nacional propondo a inclusão do assédio moral no Código Penal, com penas de três meses a um ano de cadeia, além de multa, para os chefes que vierem a praticá-lo. Autora de dois livros sobre o assunto, a psicanalista francesa Marie-France Hirigoyen defende a tese de que a punição dos chefes pode ser eficaz no combate ao problema. Ela afirma que, na grande maioria dos casos, a violência contra os subordinados é consciente e estratégica – com o objetivo de criar as condições para que um superior hierárquico se livre de funcionários que se tornam indesejáveis para a empresa mas estão protegidos por algum tipo de estabilidade no emprego. "Como não pode simplesmente despedir o cidadão, o chefe começa a fustigá-lo para forçar que ele próprio tome a iniciativa de pedir demissão", diz Marie-France.

Existem, evidentemente, também motivações inconscientes num chefe assediador, como a insegurança, complexos de vários matizes e intolerância a comportamentos diversos dos padrões mais comuns. Um caso clássico, descrito pela especialista francesa, é o do sujeito que avançou na carreira bajulando outros superiores até anular a própria personalidade e tornar-se um ampliador dos castigos e humilhações que ele mesmo enfrentou. Muitas vezes, essas são pessoas cordatas e sensíveis na vida doméstica, mas que viram carrascos dentro do escritório. Empresas bem organizadas, quando notam um chefe com essas características, podem ajudá-lo recomendando psicoterapia, entre outros tratamentos. Com a franca tendência observada na Justiça trabalhista de condenar companhias nas quais ocorrem casos de assédio, essa é uma questão de economia de custos e pode evitar danos à imagem de marcas construídas ao longo de décadas. Informações importantes sobre as razões de um superior que humilha seus comandados podem ser descobertas com base no perfil das vítimas. Conforme a pesquisa da professora Margarida Barreto, alguns dos alvos preferenciais da violência moral nas empresas nacionais estão entre pessoas que:

têm problemas de saúde;

estão no final do prazo de estabilidade posterior a acidente de trabalho ou retornam de licença-maternidade;

ultrapassaram a idade de 35 anos;

questionam as políticas de gestão;

são solidárias com colegas também assediados.

O consultor Antônio Roberto Soares, que dá palestras em empresas sobre aspectos comportamentais, observa que há uma oposição entre a atitude de muitos chefes e as técnicas de liderança mais aceitas nas empresas modernas. "Um gerente não é mais valorizado apenas por sua competência específica, mas também por sua capacidade de relacionamento e de motivar seus liderados", afirma Soares. Essa distância entre as práticas desejadas e a situação efetiva no mundo das corporações não é um paradoxo único. Ela pode ser observada, também, no fato de que a tecnologia não reduziu a jornada de trabalho, como se imaginava no passado. O lado sombrio das relações entre chefes e subordinados, mapeado na pesquisa da professora Margarida, não é o único problema nesse universo – mas é o que mais produz vítimas.

Com reportagem de Maria Cláudia Santos

ADVERTÊNCIAS, BERROS E ISOLAMENTO

"Entre 2004 e 2005, fui moralmente assediada por coordenadores do departamento da universidade onde trabalhei até o mês passado. Depois de um período de afastamento, encontrei um ambiente hostil. Deram-me um horário irracional. Em um dia, tinha de trabalhar doze horas ininterruptas. Quase todos os dias, recebia ofícios de advertência, sem que nada tivesse feito de errado. Elegi-me para uma comissão de prevenção de acidentes e passei a ser ainda mais humilhada. Deram-me atividades de orientação de estagiários, com a justificativa de que eu não tinha qualificação para dar aulas. Numa reunião, o coordenador agrediu-me aos berros na frente de colegas e funcionários. Cheguei a ser colocada numa salinha, sem nada para fazer. Nesse processo estressante, adoeci e voltei a sofrer convulsões depois de 24 anos sem ter esse problema. Também perdi mais da metade da minha renda."

Denise Gomes, 50 anos, professora em Belo Horizonte, obteve, na Justiça, em primeira instância, a rescisão do contrato de trabalho e o direito a indenização de 25 000 reais.

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PERSEGUIDO PELA JUÍZA

"Tirei licenças a que tinha direito depois de passar por uma separação. Quando voltei ao trabalho, em 2001, me vi diante de uma perseguição patrocinada pela juíza titular da Vara do Trabalho onde eu trabalhava e pelo diretor da secretaria do Fórum. Todo o meu trabalho era questionado de forma arbitrária. O processo começou com uma representação na corregedoria, na qual alegavam atraso de serviço. Mas eu cumpria os prazos legais. Sofri várias penalidades ­ da extinção de uma gratificação até a remoção para outra cidade e o afastamento do trabalho. Tudo isso, apesar das médias altas que eu obtinha nas avaliações de desempenho. Minha vida privada foi levada para dentro do trabalho. A juíza utilizava meus problemas familiares como álibi para me perseguir. Chegou a tentar me afastar do meu filho. Depois de dois anos, o Tribunal Superior do Trabalho reconheceu que eu tinha sido vítima de abuso de autoridade por parte de alguém que devia ser uma guardiã da Justiça. Fui reintegrado ao trabalho, mas nesse processo me tornei um homem doente, portador da Síndrome de Burnout ­ uma doença causada pelo estresse extremo no trabalho. Continuo afastado e faço tratamento psiquiátrico."

Wagner Pereira Prado Silva, 46 anos, oficial de Justiça na cidade mineira de Pouso Alegre-MG, venceu a causa no TST por unanimidade.

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O FIM DE UM PESADELO

Fotos Jefferson Bernardes/Preview.com

"Durante cinco anos vivi uma situação de abuso diário. O gerente da empresa me submetia a situações humilhantes. Na frente de todos, me abraçava por trás, pressionando meus seios e fixando os olhos no meu decote. Dava tapinhas e beliscões nas minhas nádegas quando eu passava pelos corredores. Fazia o mesmo com outras moças. Mesmo nos dias mais quentes, usávamos gola alta e casacos, como forma de proteção. Como eu tinha dívidas e havia tomado um empréstimo da empresa, ele fazia questão de deixar claro que eu estava nas mãos dele. O pesadelo só chegou ao fim quando tomei coragem de deixar a empresa e denunciar o caso à Justiça. Ganhei a causa, mas não consegui me livrar do trauma."

Janaína Pereira Cardoso, 29 anos, ex-promotora de vendas numa financeira em Porto Alegre, ganhou direito a indenização de 50 000 reais.

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DE SAIAS E NO CORREDOR POLONÊS

"Durante um ano e quatro meses vivi num inferno, como vendedor de uma companhia de bebidas. A ordem da gerência era ridicularizar quem não cumpria as metas. Nas reuniões que precediam as nossas saídas para a rua, cada vendedor relatava os resultados do dia anterior. Quando eu era um dos que não tinham alcançado a meta, me via obrigado a pagar prendas, como subir na mesa e fazer flexões. Ao mesmo tempo, meus colegas eram instigados pelos gerentes a passar as mãos nas minhas nádegas. Às vezes, era obrigado a desfilar de saias ou passar por um corredor polonês formado pelos colegas, ouvindo palavrões e ofensas, como 'burro' e 'imprestável'. Em seguida, eu ia para o banheiro e chorava escondido. Um dia de trabalho depois disso era o maior sacrifício. Em casa, vivia estressado, brigava com a minha mulher. Vivia a ponto de explodir."

Ronaldo Nunes Carvalho, 37 anos, vendedor em Porto Alegre, conquistou o direito a uma indenização de 21 600 reais em virtude das humilhações sofridas como vendedor de uma cervejaria.

NA GELADEIRA E NO AQUÁRIO

Foto: Roberto Setton

"A empresa em que eu trabalhava foi privatizada e passei a ser pressionada a aderir a um plano de demissão voluntária. Como resisti, fui passada de funções executivas para o preenchimento de formulários. Eu e outros colegas fomos abandonados num prédio antigo. Sem cadeiras, sentávamos em latões de lixo. No prédio novo, fomos postos em exposição numa sala de vidro. Eu era chamada de javali – porque não valia mais nada. Até hoje tenho problemas físicos e psicológicos decorrentes daquela época."

Maria Aparecida Berci Luiz, 50 anos, ex-gerente de uma empresa ferroviária paulista, obteve em segunda instância direito a indenização de 50 000 reais.

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Seu chefe ultrapassa o limite quando

Dá instruções confusas e imprecisas

Bloqueia o andamento do seu trabalho

Atribui a você erros imaginários

Ignora a sua presença na frente dos outros

Tenta forçá-lo a pedir demissão

Impõe horários injustificados

Fala mal de você ou espalha boatos a seu respeito

Pede trabalhos falsamente urgentes

Determina a execução de tarefas muito abaixo da atribuição de seu cargo

O isola da convivência com os colegas

Retira seus instrumentos de trabalho

Deixa de lhe passar tarefas

Agride você de qualquer maneira

Proíbe seus colegas de falar com você

Manda a você cartas de advertência protocoladas

Comentários

  1. Os ambientes de trabalho onde ocorrem os assédios orais, em grande número, são nos Tribunais Regionais do Trabalho, pois lá os juízes sofrem de "juizite"aguda. Receber bem para eles é pouco, eles tem que incutir o medo nos servidores, e menosprezá-los, para que eles se sintam importantes. Eles não querem crescer com o seu intelecto, nem com o seu trabalho perante à comunidade. Urge que alguém tome uma atitude. O servidor nada pode fazer diante de um questionário de avaliacão funcional anual que eles inventaram, onde há questões do tipo: "trata mal o patrimonio público","não atende o telefone(particular,comprado pelo servidor), nao trata bem o público, etc. As sandices dos magistrados sào tantas,que passamos a ignorá-las, achando-as normais, e isto é terrível, pois nos despersonaliza.

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