O trabalho não pode ser o lugar do desespero

Por Yoshiaki Nakano, no jornal Folha de S. Paulo

É possível ter empresas competitivas a nível global e internamente coesas, onde dê prazer trabalhar.

Na semana passada, o PÚBLICO publicou uma entrevista de Ana Gerschenfeld a Christophe Dejours, um psiquiatra e psicanalista francês que estuda a relação entre trabalho e doença mental. A entrevista (Um suicídio no trabalho é uma mensagem brutal, 30/1/2010), que pode ser lida numa versão mais longa no site deste jornal, tem como tema central os suicídios de trabalhadores causados pelo assédio moral nas suas empresas e debruça-se, em particular, sobre o caso da France Telecom, mas nela Christophe Dejours faz acusações à gestão moderna que merecem consideração.

Uma das técnicas que lhe merecem mais reservas é a chamada “avaliação individual de desempenho”, que praticamente hoje todas as empresas utilizam – e que tantos gestores idolatram pelo poder repressivo que lhes oferece.

Para Dejours, a avaliação individual modificou totalmente o mundo do trabalho ao pôr em concorrência entre si não só as empresas, mas também os indivíduos. Como a avaliação está em geral associada a prémios ou promoções e, por vezes, mesmo à própria manutenção do emprego, ela é uma ferramenta geradora de medo, que destrói a cooperação entre trabalhadores sobre a qual se baseia todo o trabalho e o próprio tecido social do local de trabalho.

“Aos poucos, todos os elos que existiam até aí – a atenção aos outros, a consideração, a ajuda mútua – acabam por ser destruídos. As pessoas já não se falam, já não olham umas para as outras. E quando uma delas é vítima de uma injustiça, quando é escolhida como alvo de um assédio, ninguém se mexe…” E acrescenta: “[Antes] Quando alguém era assediado, beneficiava do olhar dos outros, da ajuda dos outros, ou simplesmente do testemunho dos outros. Agora estão sós perante o assediador (…). O mais difícil em tudo isto não é o facto de ser assediado, mas o facto de se viver uma traição – a traição dos outros.” Não há, nas declarações de Dejours, para alguém que conheça minimamente o mundo do trabalho, nenhuma surpresa. Todos sabemos que as coisas são assim – à esquerda e à direita, trabalhadores e patrões, sindicalistas e directores de Recursos Humanos – mas ensinaram-nos a pensar que isso era inevitável, que essa pressão e essa submissão que os gestores tentam impor possuíam alguma racionalidade. Que os fins, em suma, justificavam os meios. Não têm e não justificam. Nunca justificam, como já devíamos ter aprendido.

O que as palavras de Dejours nos dizem, claramente, é que as empresas se transformaram muitas vezes em locais de submissão e de sofrimento inútil – às vezes de verdadeira tortura, às vezes de morte. E também nos explica – como devia ser evidente – que isso não tem de ser assim, que é melhor para todos, e também para as empresas, que as coisas não se passem assim.

Nos últimos anos, por todo o mundo, mulheres e homens de esquerda (e os sindicat Petkovicos…) acederam a abdicar dos seus princípios e aceitaram que as empresas podiam ser parêntesis da democracia, da liberdade, da igualdade, da fraternidade, da solidariedade. Pequenas ilhas de tirania e de submissão em nome da eficiência, da produtividade, do crescimento, da competitividade global. É uma falsa equação. Toda a investigação moderna nos mostra que o stress mata a inovação, que o medo estrangula a criatividade, que a submissão não produz maior empenho, que o desânimo não estimula a cooperação – essa inovação e criatividade e empenho e cooperação que são o pão da boca da economia e da produtividade. E, mesmo que isso não acontecesse, deveria bastar a nossa consciência para traçar os limites da decência.

Agora que começamos a perceber o buraco em que nos metemos, que começamos a ver os frutos dos ovos de serpente que deixámos que fossem incubados no mundo do trabalho, não será altura de arrepiar caminho?


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